Raimundo Carrero é o vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura

O escritor pernambucano Raimundo Carrero é o grande vencedor da terceira edição do Prêmio São Paulo de Literatura, na categoria Melhor livro do ano. A obra contemplada é A minha alma é irmã de Deus (2009). Carrero concorreu com nomes como João Ubaldo Ribeiro, Chico Buarque, Bernardo Carvalho e Paulo Rodrigues.

O resultado foi divulgado na noite desta segunda-feira (2), em cerimônia realizada no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. O prêmio, concedido pelo Estado de São Paulo, através da Secretaria de Cultura, contempla cada vencedor com R$ 200 mil.
O júri da premiação foi composto por Luís Felipe Pondé, Plínio Martins, Walther Moreira Santos, Moacyr Scliar e Valentim Facioli.

Na categoria Melhor livro do ano - autor estreante, o vencedor foi Edney Silvestre, com o livro Se eu fechar os olhos agora.
A minha alma é irmã de Deus fecha a tetralogia Quarteto Áspero, iniciada em 1989, com Maçã do Agreste e continuada com Somos pedras que se consomem (1995) e O amor não tem bons sentimentos (2007).

O jornalista e escritor Raimundo Carrero tem 17 livros publicados. Vencedor de vários prêmios de grande reconhecimento nacional, entre eles o Jabuti e o Prêmio Machado de Assis (este por duas vezes - em 1995 e 2009). Carrero é colunista da rádio JC/CBN, integrante do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação, onde, de segunda a sexta-feira, participa do programa CBN Total, apresentado por Aldo Vilela, com comentários sobre literatura.
Fonte:Jornal do Commercio

"Está na hora de São Paulo aprender que os nordestinos estão, de fato, invadindo a cidade", brincou Carrero, ao se referir ao ganhador do ano passado, o cearense Ronaldo Correia de Brito, que venceu por "Galiléia" (Alfaguara). "Estamos produzindo uma literatura desprovida de folclore e muito calcada nos relacionamentos humanos." (Fonte:Estadão)

LEIA COMENTÁRIO DE CARRERO

“A minha alma é irmã de Deus” é um romance da juventude sem identidade"

"Fazia tempo estas palavras queimavam os meus dedos. E a minha alma. Elas vinham da Bíblia e ficavam ali diante dos meus olhos, no papel, e pediam para pulsar no meu texto. Até que Camila, a menina que sonha ir para o céu a fim de desfilar no exército das onze mil virgens, ouvia-as. Estava só e abandonada, na imensa solidão da noite recifense, empurrando uma carroça vazia, sem comida. O narrador inominado que a acompanha lembra, em meio aos faróis acesos dos carros e das portas que se fecham a cada uma das suas amarguras, nas ruas do Recife, que ela “tem que dormir no terreno ao lado da casa. E ainda ouve as batidas do martelo. Nem mesmo teria jantar. Que palavra estranha. Sempre palavra. Palavras são águias, Camila, palavras são águias no caminho do ar”.

A personagem acaba de perder seu único bem: as ruínas de uma casa desabitada no bairro da Boa Vista, onde dormia e tomava banho. Os operários batem os pregos nos últimos tapumes e ela não pode entrar, mas ainda lhe resta última esperança: o lixo, onde se deitará para dormir. Expulsa de casa, expulsa da vida. Procura um papel para se cobrir, e o narrador, que a acompanha e com quem conversa, procura ainda as derradeiras palavras que a consolem, dizendo que o jantar – não comera um único pão durante o dia - é apenas uma palavra. E o que é uma palavra, enfim? Uma palavra é indecifrável, um enigma, uma esfinge, tão misteriosa quanto o caminho de uma águia no ar procurando alimentos. Mesmo bela, superiora e a voar, valente, desenha riscos que não podem ser classificados.
Quando comecei a pensar em “A minha alma é irmã de Deus”, romance agora lançado pela Editora Record, do Rio de Janeiro, a personagem Camila se impôs com a sua rebeldia e a sua generosidade. Nascia como nasce a maioria dos meus personagens: de uma página de jornal. Cedo da manhã lendo, descobria-a: ela estava ali, completa, embora apenas os olhos – dois olhinhos inquietos e sofridos – aparecessem numa foto colorida, mas cheia de sombras. Era o dia 9 de março de 2006. A matéria contava a história de uma menina de doze anos que vivia nas estradas, prostituída, e que se tornara amante de um caminhoneiro. Preguei o recorte no meu álbum e garanti: ela vai me acompanhar durante, pelo menos, dois anos. Errei por um ano. Ela ficou três anos. Aliás, nunca mais vai sair de mim.
Fiquei, também eu, marcado, a ferro e fogo, pela trajetória da menina, no início era apenas uma menina até envelhecer, e pelas inquietantes palavras que a acompanhavam enquanto sofria fome e sede, abandonada da sorte, esquecida pelo destino, embora animada por um fiapo de esperança. Ela vai se tornando cada vez mais calada, cada vez mais silenciosa, cada vez mais humilhada, até que se encontra naquela situação em que só pode ser consolada pelo caminho das águias. Nenhum gemido, nenhum ruído, só a vida com o seu sentimento de adeus. Permanente sentimento, revelado no parágrafo:

“Havia silêncio para cada coisa – ela aprendeu muito cedo na vida. Silêncio para janela, silêncio para porta, silêncio para cadeados, silêncio para lixo, silêncio para silêncio. Silêncio. Sumindo, muito devagar, com os ventos, tudo muito devagar, lentamente. Afundando na noite, sempre afundando, a noite do Recife coberta pelo silêncio. Pelas ruínas. Pelo silêncio da noite, pelas ruínas trancadas. O silêncio do Recife parece se espalhar e escurecer. Porque nessa hora todo silêncio é escuro. Por isso é ainda mais silêncio. Todo esse silêncio do Recife. Um silêncio que naufraga, afunda, some. E com ele, as pessoas. E as pessoas vão entrando no silêncio, no Recife, e começam a sumir. As pessoas somem tragadas pelo silêncio. Bem devagar, muito devagar, elas somem. E pronto. É assim que o mundo vai embora?”

De certa forma, este é o mundo que povoa a alma de Camila, seqüestrada pelos “Soldados da pátria por Cristo”, uma seita religiosa criada por Leonardo, um homem bêbado, que anda faminto pelas ruas, e toca saxofone nas calçadas sempre que tem fome e sede. É acompanhado pelas irmãs Raquel e Ísis, que também são suas amantes,
e pela quieta Mariana, uma mulher do sertão, cujo principal traço é a humildade, incapaz de falar enquanto não é ordenada. E, ao lado deles, patético e sóbrio, o camelô Alvarenga, uma espécie de duende a proteger Raquel, a prostituta que se joga no mundo porque tem um corpo social. Para atrair os fregueses no cabaré, Alvarenga toca uma corneta com toque marcial e é presenteado por Raquel com um peixinho de chocolate, que ele recebe nas pontas dos pés, como se fosse uma foca amestrada. Vivem em ruínas nos bairros do Recife, até que são expulsos. E logo procuram outra ruína, e mais outra, e mais outra, circulando sempre entre ruínas, silêncio e miséria. Mas não deixam de rezar e a gritar “amém?, amém”. Com a indolência de quem não sabe improvisar um sermão.
É claro que, para escrever este livro, recorri a várias técnicas, uma delas atingindo a própria Camila. Em certo sentido, ela é, ao mesmo tempo, Camila, Raquel, Ísis e Mariana, além de uma remota Paloma. Quando precisa ser Raquel, é Raquel, quando necessita ser Ísis – de quem tem muito medo -, é Ísis, e gosta, particularmente, de ser Ísis. A multiplicidade de caráter é também a multiplicidade de corpos. São personagens, na verdade, que vêm de outros romances meus, porque “A minha alma é irmã de Deus” é o quarto romance, que fecha a tetralogia “Quarteto Áspero”, iniciada com “Maçã Agreste”, seguido de “Somos pedras que se consomem” e “O amor não tem bons sentimentos”. De maneira que, para escrevê-lo, fui em busca de outra técnica não muito usual no Brasil e que se chama intratextualidade. Ou seja, usei textos meus de outros romances, assim como fiz em relação a personagens, para formar o tecido literário do livro. Às vezes, por exemplo, tive que trocar nomes de personagens. O caso é de Camila, que se chamava Sofia, em “Maçã agreste”, e que, num romance futuro, pode voltar a ser Sofia, a filha de José. Há, ainda, um intertexto – ou seja, o uso de palavras e frases de outros autores, que dão ao romance aquela universalidade de vozes de que tantos falamos. Sem imitação. Sem uma única imitação.
Além disso, “A minha alma...” procura reunir as técnicas que estudamos em nossa oficina e que estão, didaticamente, em “A preparação do escritor”, publicado pela Editora Iluminuras, e que também está nas livrarias, em lançamento recente. Técnicas que vinha desenvolvendo há muito tempo e que completam meu outro livro “Os segredos da ficção: um guia na arte de escrever narrativas”, da Editora Agir, 2005, Rio de Janeiro.
Mas não vou esquecer nunca aquelas palavras de Emily Dickinson, pronunciadas no pórtico da segunda parte do livro, e que define o caráter de todos os personagens: “Aquilo que chamam de amor é o exílio”. Fonte:raimundocarrero.com.br


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